A RECEP«ˆO DAS IDŠIAS DE MARCUSE NO BRASIL


By Jorge Coelho Soares[1]



A recepÁ“o das idÈias de Marcuse no Brasil coincidiu, cronologicamente, com a aproximaÁ“o dos outros teÛricos da Escola de Frankfurt ao ambiente intelectual brasileiro naquela Època. Esta dupla entrada, porÈm, n“o se deu de forma estruturada, seguindo uma seq¸Íncia que se supže, deva acontecer, ou seja, a Escola de Frankfurt surgindo como um corpo teÛrico "monolÌtico", ao qual se ligariam tais ou quais teÛricos - entre eles Marcuse - que fariam gradualmente sua entrada em cena.

Em funÁ“o disso, a aproximaÁ“o dos intelectuais brasileiros ýs idÈias da "Escola", produziu resultados que n“o apontavam em uma ™nica e sÛ direÁ“o. Ao contr·rio, a recepÁ“o das idÈias da Escola de Frankfurt no Brasil produziu resultados substancialmente diversos. E isto pode ser atribuÌdo ý conjunÁ“o de dois fatores. O primeiro, ý heterogeneidade imanente ý prÛpria Escola em funÁ“o, quer da diversidade de formaÁ“o dos seus teÛricos, quer pela amplitude dos temas a que se dedicavam. O eixo teÛrico que os unia, nem sempre era suficientemente claro para permitir percebÍ- los, pelo menos numa primeira leitura, como pertencentes a um mesmo grupo teÛrico. O segundo fator, foi a heterogeneidade das condiÁžes histÛricas em que ocorreu no Brasil esta recepÁ“o. Isto se refere especificamente ýs dÈcadas de 60 e 70, pelo menos no que diz respeito ýs primeiras aproximaÁžes.

No caso do Brasil, estas duas dÈcadas podem ser periodizadas no mÌnimo em trÍs momentos distintos: os anos iniciais atÈ o golpe militar de 31 de marÁo de 1964, que depÙs um presidente civil e instaurou em seu lugar uma ditadura militar por vinte anos; os anos intermedi·rios entre marÁo de 1964 atÈ a ediÁ“o do AI5 [2] em 13 de dezembro de 1968; e os seus anos finais, anos de apogeu da ditadura militar, atÈ meados da dÈcada de 70, seguidos de uma gradual e lenta abertura polÌtica em direÁ“o a um regime democr·tico.

A Escola de Frankfurt chega justamente ao Brasil, timidamente, no segundo momento histÛrico desta periodizaÁ“o provisÛria que propus antes para os anos 60/70.

Seus teÛricos, mesmo neste perÌodo, s“o ainda praticamente desconhecidos, mesmo entre filÛsofos brasileiros. Destaque-se aÌ neste momento, a Revista da CivilizaÁ“o Brasileira, editada de marÁo de 1965 a dezembro de 1968. Possivelmente era a de maior circulaÁ“o nacional entre intelectuais na Època e j· registrava a publicaÁ“o de alguns artigos de membros da Escola de Frankfurt. Dois s“o de Marcuse: "Liberdade e Agress“o na Sociedade TecnolÛgica"[3] (Ano III, n.† 18, marÁo/abril 1968), "Finalidades, Formas e Perspectivas da OposiÁ“o Estudantil no Estados Unidos"[4] (Ano IV, n.† 21/22, set./dez. 1968). Um de Adorno: "Moda sem Tempo: Jazz"[5] (Ano III, n.† 18, marÁo/abril 1968). E um dos textos mais conhecidos e divulgados de Walter Benjamin: "A Obra de Arte na Era da sua Reprodutibilidade TÈcnica"[6] (Ano IV, n.† 19/20, maio/agosto 1968). Em nenhum deles porÈm, se faz qualquer alus“o ý vinculaÁ“o dos autores com um "movimento de idÈias" que os aproximasse e que, j· naquela Època, era conhecido e consagrado internacionalmente como Teoria CrÌtica ou Escola de Frankfurt.

A maior parte dos trabalhos destes teÛricos ainda se encontrava em alem“o e as expressžes "Escola de Frankfurt" ou "Teoria CrÌtica" eram, se muito, uma referÍncia ainda pouco valorizada no discurso de rarÌssimos intelectuais e filÛsofos brasileiros, que tinham acesso a uma bibliografia que n“o circulava aqui com facilidade.

Schwarz (1995) avalia como extremamente negativa esta "ausÍncia" da Escola de Frankfurt no pensamento dos marxistas brasileiros, particularmente atÈ meados dos anos 60. Para ele, o marxismo mais sombrio dos frankfurtianos era, na verdade, mais impregnado de realidade que os demais, j· que havia "assimilado e articulado uma apreciaÁ“o plena das experiÍncias do nazismo, do comunismo stalinista e do "american way of life" encarado sem complacÍncia". O trabalho de JosÈ Guilherme Merquior, Arte e Sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin, publicado pela Editora Tempo Brasileiro em 1969 È uma das raras exceÁžes daquela Època. Constitui, sem d™vida, o primeiro estudo brasileiro envolvendo o "bloco principal" (pelo menos, naquele momento) dos pensadores da Escola de Frankfurt, n“o havendo registro de nenhum outro de semelhante envergadura, naquela Època. Na apresentaÁ“o deste trabalho, o prÛprio Merquior aponta que as obras dos autores por ele estudados s“o "em sua maioria desconhecidas no Brasil" (1969, p.15). Marcuse chega ao Brasil neste mesmo perÌodo histÛrico, porÈm dois anos antes do trabalho de Merquior, acima citado, e um ano antes do Maio de 68.

Marcuse chegava trazido pelos ventos passageiros, mas extremamente relevantes, de uma abertura intelectual no Brasil que, contrariamente ao que se pensa, caracterizou boa parte da dÈcada de 60, mesmo apÛs a instauraÁ“o do regime militar em 1964. Houve inclusive, principalmente de 1964 a 1968, a aceleraÁ“o de um processo de abertura em direÁ“o ýs mais importantes correntes da cultura universal. Isto gerou, entre outras coisas, um n™mero significativo de novas traduÁžes de autores e teÛricos consagrados. A percepÁ“o de um gradual fechamento do regime e da possibilidade de instauraÁ“o de uma ditadura militar, em moldes fascistas ñ o que efetivamente acabou acontecendo ñ, eletrizava boa parte da intelectualidade brasileira. Era preciso abastecer o mercado das discussžes polÌticas e ideolÛgicas com novos autores, novas idÈias, novas formas de luta que pudessem fazer frente ýquela ameaÁa que pairava no ar.

Em relaÁ“o especificamente ao marxismo, Carlos Nelson Coutinho e Leandro Konder[7] que, na Època, alÈm de ligaÁžes teÛricas estreitas com o marxismo, exerciam tambÈm milit’ncia polÌtica no PCB, enfatizaram que, pela primeira vez se pÙde quebrar o monopÛlio dos manuais soviÈticos[8]. Avaliando aquele perÌodo histÛrico, Schwarz (1995) enfatizar· o incÙmodo intelectual que causava a onipresenÁa deste manuais como a ™nica interpretaÁ“o autorizada aos textos marxistas, que o PCB impunha: "Afrontava o direito de exclusividade, o monopÛlio exegÈtico que os partidos comunistas haviam conferidos a si mesmos em relaÁ“o ý obra de seus cl·ssicos, da qual davam uma vers“o de catecismo, inepta e regressiva". Esta pesada e intelectualmente tr·gica heranÁa do "Realismo Socialista", fazia com que uma antiga afirmativa de Ernst Bloch ganhasse vida e atualidade no contexto daquela realidade brasileira: o marxismo corria muito mais riscos pela aÁ“o dos seus ardorosos defensores, do que propriamente por parte dos seus inimigos declarados.

Tendo como um de seus objetivos principais justamente a quebra deste monopÛlio sobre uma interpretaÁ“o, j· rigidamente fixada pelo PCB, e em busca da construÁ“o de uma esquerda ý altura de seu tempo, muitos intelectuais se engajaram numa luta em favor da inserÁ“o/traduÁ“o de novos, e por aqui pouco conhecidos, teÛricos marxistas: "A bibliografia marxista brasileira se enriqueceu n“o sÛ com os trabalhos de Luck·cs, Gramsci, Goldmann, Althusser, Baran e Sweezy, Adam Schaff mas de muitos outros" (Coutinho, 1990, p. 187).

Por outro lado, a boa receptividade das obras de Marcuse, por amplos setores da intelectualidade e entre os jovens brasileiros, com Ínfase especial para Eros e CivilizaÁ“o e Ideologia da Sociedade Industrial, pode tambÈm ser creditada a dois outros fatores. Primeiro porque, de todos os membros da Escola de Frankfurt, era o ™nico realmente conhecido e valorizado. J· freq¸entava regularmente os meios de comunicaÁ“o, sendo neles freq¸entemente apontado como "maÓtre ý penser" dos movimentos de rebeli“o, particularmente entre os jovens, que ocorriam em v·rios paÌses da Europa. O segundo fator que ajudou ý esta boa receptividade de Marcuse, foi o fato de que, naquele momento, j· havia um crescente desagrado em relaÁ“o ýs posiÁžes "teÛricas e pr·ticas" que emanavam do PCB, que se apresentava como uma espÈcie de guardi“o institucional do marxismo e seu "™nico" porta-voz. O seu car·ter ritualizado e burocratizado desagradava a amplos setores da intelectualidade, incluindo boa parte dos seus militantes, que esperavam do partido uma aÁ“o mais combativa e direta. Diante do "endurecimento" do regime militar, em direÁ“o a uma ditadura mais e mais asfixiante, questionava-se abertamente a timidez dos quadros do PCB em face desta realidade concreta. Neste contexto, a idÈia de uma "Grande Recusa" parecia mais adequada ao clima de impaciÍncia revolucion·ria que se avolumava, do que as teorizaÁžes protelatÛrias de uma aÁ“o revolucion·ria que nunca se efetivava.

Misturada ecleticamente com Mao, Marx, Debray e Althusser, amplos setores da intelectualidade, particularmente os de esquerda, ignoraram num primeiro momento as incoerÍncias teÛricas que poderiam estabelecer rejeiÁžes incontorn·veis entre esses teÛricos. Adotaram-nos "em bloco", como aqueles que seriam capazes de fornecer subsÌdios teÛricos para uma aÁ“o eficaz, quer contra a ditadura, identificada ao Capitalismo, quer contra o "Partid“o"[9], portador para eles de uma esclerose senil do marxismo.

O momento seguinte da recepÁ“o e apropriaÁ“o das idÈias de Marcuse, ocorre logo a seguir ý "aÁ“o", gerada por uma impaciÍncia que acreditou poder vencer a ditadura pela luta armada.

O impacto com a durÌssima realidade de um sistema social e polÌtico, extremamente cruel com qualquer tipo de oposiÁ“o, principalmente armada, estabeleceu para "as esquerdas" novos limites de pensamento e aÁ“o. Uma parte dela, voltou-se em direÁ“o a outros teÛricos como Althusser[10] e Gramsci, que pareciam oferecer perspectivas de an·lise que permitiriam uma sustentaÁ“o da resistÍncia a longo prazo, atravÈs de outros mecanismos de luta com a ditadura, cuja retaliaÁ“o, inexor·vel, era inteiramente desfavor·vel ýs esquerdas.

Uma outra parte, se voltou "realmente" em direÁ“o ý Grande Recusa, tomada por eles porÈm, num sentido t“o literal e prÛprio quanto absolutamente excludente. Recusavam a ditadura, o capitalismo, a tecnologia, todo o legado cultural anterior, a ciÍncia e, principalmente, recusavam a "raz“o ocidental". Esta, que no sÈculo XVIII fora vista como absolutamente necess·ria e suficiente para dar conta do mundo, ao ser percebida nos anos 60 como necess·ria mas n“o suficiente, podia, finalmente, ser totalmente descartada. Como n“o era suficiente, deixara de ser tambÈm necess·ria. Se "o sonho da raz“o sÛ produzira monstros" atÈ ent“o, era a vez de entronizar a "desraz“o" e construir um outro "admir·vel mundo novo".

Surgiam assim os movimentos de contra-cultura, assumindo no Brasil dos anos 70 a sua vers“o tropicalista, permeada de um romantismo utÛpico anti-capitalista, anti-tecnolÛgico. Tudo conspirando a favor de um hedonismo que apontava o corpo e suas sensaÁžes como objetivo m·ximo de "libertaÁ“o". O indivÌduo passava a ser visto como a ™ltima inst’ncia indivisÌvel e fundadora de sentido. Marcuse, sem ser consultado, È ent“o embarcado na "stultÌfera nave" da contra-cultura.

Creio que se pode afirmar, ao menos como hipÛtese, para a transformaÁ“o de Marcuse em fonte de inspiraÁ“o para v·rios movimentos de contra-cultura no Brasil, alguns fatores que aÌ se combinaram: o primeiro È que as pessoas que compunham os grupos de contra-cultura se detinham basicamente em somente duas das obras de Marcuse, que eram as mais divulgadas no Brasil, Eros e CivilizaÁ“o e Ideologia da Sociedade Industrial. Ao descontextualizar estas obras do conjunto de reflexžes de Marcuse, facilitava-se uma apreens“o/interpretaÁ“o "radicalizada" e "idiossincr·tica" de muitos de seus conceitos, cuja carga de "ambig¸idade" poderia se dissolver - ou pelo menos ser matizada - no confronto com as suas demais obras. Esta ambig¸idade de muitos dos seus conceitos, que acredito ser mais aparente do que real, associada ý forÁa poÈtica de suas propostas utÛpicas - Orfeu e Narciso contra Prometeu, a necessidade de uma "nova sensibilidade", a luta genÈrica contra "a repress“o", entre outras - deve ter exercido o seu papel neste processo, de seduÁ“o e cooptaÁ“o de Marcuse como ideÛlogo de uma contra-cultura. N“o creio, todavia, que realmente, a maioria dos jovens e intelectuais daquela Època tivesse "realmente" lido Marcuse, no sentido de uma leitura atenta, dissecadora e reflexiva, capaz de lev·-los a compreender a arquitetura das suas reflexžes teÛricas. Ali·s, o prÛprio Marcuse, naquela Època, parece que compartilhava desta hipÛtese. Em uma entrevista realizada na FranÁa, em 68, ele afirmou: "Acredito que existem muito poucos estudantes que me leram na verdade..." e atribuÌa ý imprensa e ý publicidade criada em torno de seu nome, o fato de ter se transformado numa "mercadoria de grande aceitaÁ“o"[11]. Inclino-me a pensar que, mesmo em relaÁ“o ýs suas duas obras de maior divulgaÁ“o antes citadas, a leitura j· realizada foi mais superficial do que filosÛfica, mais presa aos conceitos, assumidos como "verdades que falavam por si mesmas", do que ýs suas definiÁžes, dadas por Marcuse.

¿ isto agrego uma outra hipÛtese complementar. Na construÁ“o do estereÛtipo que foi esboÁado pelos jovens e muitos intelectuais daquela Època, numa simplificaÁ“o de Marcuse e suas idÈias, jogou um papel decisivo um fenÙmeno a que os ingleses denominam jumping to conclusions. Merquior sugere este termo, ao criticar a leviandade de boa parte dos intelectuais ou dos que se acreditam como tal, diante de novas teorias. Para ele, È comum ocorrer neste tipo de intelectual, uma "alegre corridinha do espÌrito humano rumo ýs conclusžes precipitadas, saltitando para a proclamaÁ“o a-crÌtica de redutoras "idÈias gerais", sem se dar ao incÙmodo de verificar nem qualificar coisa alguma" (Merquior, 1969, p.17).

Acredito assim, que a maioria da intelectualidade da Època, principalmente os jovens, "portava" Marcuse mais do que o lia. Faziam dele, principalmente, um uso emblem·tico, carregando suas obras, mais do que dissecando-as em seus fundamentos. AtravÈs delas, lhes eram conferidos signos distintivos de saber, rebeldia e vanguardismo. Conferiam a seus portadores "poder e atualidade", expressos no car·ter ostensivo da sua exibiÁ“o - j· que atravÈs de relatos e entrevistas[12] pude constatar que os livros de Marcuse foram, sem d™vida, muito "vistos", mas n“o necessariamente lidos. Os livros de Marcuse talvez oferecessem a seus portadores, na Època, o sÌmbolo de uma fantasia de "engajamento e contestaÁ“o", acalentada pelos intelectuais e jovens da Època.

Marcuse era, portanto, particularmente naquele momento histÛrico dos anos 60, moeda corrente no "mercado dos bens simbÛlicos"[13]. Sua inserÁ“o entre nÛs, n“o se deu aÌ atravÈs de um real domado nos limites da raz“o, que se legitima ao estabelecer julgamentos ý luz dos fatos. Defendo, pelo contr·rio, que a apropriaÁ“o de suas idÈias, bem como o processo de constituiÁ“o das diversas imagens que compuseram os m™ltiplos "Marcuses", foram elaboradas sem que o real tivesse exercido hegemonicamente o seu poder. Marcuse foi constituÌdo, principalmente, num hipotÈtico espaÁo intervalar entre o real - representado aqui pela efetiva publicaÁ“o de suas obras e o imagin·rio social, que dele se apropriou reinterpretando-o, permitindo assim o seu uso emblem·tico.

Por fim, a terceira e ™ltima fase da recepÁ“o das idÈias de Marcuse no Brasil, que basicamente se estende atÈ os nossos dias, vai ocorrer de forma completamente diferente das duas primeiras j· descritas.

O perÌodo MÈdici[14] havia sangrado de morte o imagin·rio dos jovens e da intelectualidade nos anos 60 e 70. Teoria e pr·tica haviam passado por um longo e doloroso confronto. Fora necess·rio descobrir mecanismos para fazer a revoluÁ“o, articulando reflex“o teÛrica crÌtica e a pr·tica. As "aventuras do espÌrito" tinham sido substituÌdas rapidamente pelas "aventuras da aÁ“o" e para atravessar o limite entre o mundo real, amplamente rejeitado e o mundo imagin·rio em direÁ“o ýs utopias, sÛ os teÛricos da aÁ“o passavam a despertar interesse. A pr·tica revolucion·ria tinha pressa.

Marcuse vai ent“o para um certo ostracismo, no Brasil, que dura praticamente toda a dÈcada de 70[15]. Ao retornar, no fim desta mesma dÈcada, viu seu papel reduzido a um dos membros "menos relevantes" da Escola de Frankfurt. A inserÁ“o da Escola como um todo j· estava aceleradamente em curso e os nomes de Adorno, Horkheimer e Benjamin despontavam como seus maiores expoentes, aos quais se juntou logo a seguir Habermas. ¿ Marcuse, a histÛria deste movimento de idÈias, conhecido como Teoria CrÌtica, reservou um papel de coadjuvante; aquele que, tendo se inspirado nas idÈias centrais deste "movimento", correu em trilho prÛprio, "radicalizando" algumas destas concepÁžes teÛricas.

Marcuse porÈm, agora j· despojado da aura produzida pela mÌdia, podia ser tambÈm melhor lido e avaliado. Havia j·, entretanto, muitas e variadas opÁžes teÛricas ý disposiÁ“o dos intelectuais, incluindo mesmo dentro da prÛpria teoria crÌtica[16].

Pode-se tambÈm ressaltar que, esta ™ltima fase de assimilaÁ“o da Escola e de Marcuse, n“o mais essencialmente via New Left dos Estados Unidos - onde Marcuse representou figura de proa com predomÌnio absoluto na primeira fase e boa parte da segunda - foi sucedida por sua vertente "europÈia", num retorno ýs suas raÌzes originais.

Esta tambÈm È a Època a partir da qual se destaca, cada vez mais, um intelectual brasileiro que pode, sem nenhum favor, ser apontado como o respons·vel pelo processo de disseminaÁ“o da Escola de Frankfurt no Brasil: SÈrgio Paulo Rouanet. AtravÈs de seus textos, alguns j· publicados aqui no fim da dÈcada de 60 e outros mais que vem produzindo regularmente, desde os anos 70, se percebe a marca registrada frankfurtiana[17]. H· dele tambÈm um excelente texto de 1968, um dos raros e pouco conhecidos desta Època, em que se propÙs fazer uma an·lise crÌtica sÈria, fora da tÙnica geral daquela Època de exaltaÁ“o cega, do conjunto da obra de Marcuse atÈ aquele ano. Foi editado pela Revista Tempo Brasileiro, a mesma editora a que se pode atribuir um papel relevante na divulgaÁ“o - atÈ hoje - de muitas obras de autores ligados ý Teoria CrÌtica[18], especialmente as de Habermas. Nesse sentido, a relaÁ“o que se pode apontar entre SÈrgio Paulo Rouanet bem como com B·rbara Freitag, quer como articulistas, quer como consultores desta editora acima citada, tem sido fundamental para a divulgaÁ“o do pensamento da Escola de Frankfurt no Brasil. A prÛpria produÁ“o intelectual dos dois, particularmente na ™ltima dÈcada, tem sido exemplar nesta direÁ“o.

AtravÈs de Rouanet expurgou-se, definitivamente, qualquer apropriaÁ“o irracionalista, fora dos propÛsitos originais, quer de Marcuse quer da Escola, como um movimento de idÈias. Na obra de Rouanet h·, da mesma forma, um sempre renovado esforÁo de sustentar um debate vivo em torno da Teoria CrÌtica, quer em relaÁ“o a seus pressupostos teÛricos, quer quanto ao seu potencial como desveladora de nossa contemporaneidade.

Rouanet, por fim, tem o duplo mÈrito de ter reconciliado uma boa parte da intelectualidade de esquerda no Brasil com a perspectiva frankfurtiana e ao mesmo tempo - principalmente pela seriedade de suas an·lises e atualidade das mesmas - de ter seduzido para ela outros tantos intelectuais, oriundos de outras perspectivas, antes completamente refrat·rios ý Escola de Frankfurt.

Portanto, esta ™ltima fase da recepÁ“o da Escola de Frankfurt e de Marcuse no Brasil, vem se caracterizando - em relaÁ“o ýs duas anteriores - por ser fortemente impregnada de um racionalismo decisÛrio, nas formas de apropriaÁ“o de suas idÈias, pelos intelectuais que se interessam por sua perspectiva. Isto vem permitindo que se faÁa dela uma avaliaÁ“o mais reflexiva, mais serena e crÌtica das suas contribuiÁžes teÛricas.

Endnotes

1. Professor Adjunto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro/UERJ.

2. AI5 ñ Ato Institucional N† 5. Norma de natureza constitucional expedida pelo governo militar, fechando o regime e dando inÌcio aos "anos de chumbo" no Brasil entre 1968 e 1975.

3. ConferÍncia publicada originalmente em espanhol, de onde se fez a traduÁ“o. Revista Ciencias Politicas y Sociales. Madrid, n† 43/44, Jan./mar./abr./jun., 1966.

4. Resumo da conferÍncia de Herbert Marcuse Das Problem der Gewalt in der Opposition, que compže o livro Das Ende der Utopie. A traduÁ“o foi feita do texto em italiano publicado no L'Unita de 12/set./1968.

5. Um dos capÌtulos do livro de Adorno PRISMEN. Kulturkritik und Gesellschaft.

6. Artigo originalmente publicado em 1936 na Zeitschrift f¸r Sozialforschung com o tÌtulo de L'åuvre d'art ý l'Èpoque de as reproduction mÈcanisÈe. Este texto porÈm , foi traduzido para o portuguÍs do italiano. Posteriormente largamente divulgado em outras publicaÁžes em portuguÍs. Possivelmente, o texto mais conhecido, quer de Benjamin, quer da Escola de Frankfurt no Brasil.

7. Entrevistas com o autor deste texto. Leandro Konder e Carlos Nelson Coutinho autores de v·rios livros nas ·reas de Filosofia e CiÍncia PolÌtica, s“o reconhecidos atÈ hoje como "intelectuais marxistas".

8. Entre estes manuais, um trabalho coletivo de oito autores russos foi, aqui no Brasil, um dos mais divulgados: Kuucinen, O. V. et al. Fundamentos do Marxismo-Leninismo, 1962, com quase 800 p·ginas.

9. Partid“o: forma, ýs vezes depreciativa, largamente usada, de se referir ao PCB no Brasil.

10. Coutinho, crÌtico severo de Althusser, atribuir a este teÛrico e a sua combinaÁ“o com o estruturalismo da Època a "produÁ“o escol·stica e estÈril" que passou, segundo ele, a dominar uma parte substancial da produÁ“o universit·ria e editorial daquela Època (Coutinho, 1990).

11. Marcuse, Revista Manchete, n.† 863, 2/11/68, p.30-35. Originalmente esta entrevista foi publicada na mesma Època no L'Express.

12. Aludo aqui as entrevistas que realizei com filÛsofos brasileiros para a minha tese de doutoramento: Marcuse no Brasil: IdÈias e Imagin·rio.

13. Utilizo aqui a express“o nos termos de Bourdieu em Economia das Trocas SimbÛlicas, 1992.

14. EmÌlio Garrastazu MÈdici ñ presidente militar, n“o eleito, entre 1969 e 1974, considerado o perÌodo do terror da ditadura militar no Brasil.

15. Ainda em 1973 saiu no Brasil, pela ditora Zahar, a traduÁ“o de um livro de Marcuse, Contra-RevoluÁ“o e Revolta, que ele escrevera no ano anterior.

16. Sem nenhuma pretens“o exaustiva, podemos citar as obras abaixo, editadas j· na dÈcada de 70: Adorno e Horkheimer, Temas B·sicos de Sociologia, 1973; Benjamin, A Modernidade e os Modernos, 1975; Kothe, Para ler Benjamin, 1976; Jimenez, Para Ler Adorno, 1977; Adorno, Filosofia da Nova M™sica, 1974 e Notas de Literatura, 1973; Slater, Origem e Significado da Escola de Frankfurt, 1978; Cohn, ComunicaÁ“o e Ind™stria Cultural, 1975; Benjamin, Horkheimer, Adorno e Habermas, Textos Escolhidos, ColeÁ“o Os Pensadores, 1975.

17. Citaria dele, entre outros trabalhos, os seguintes como exemplo desta produÁ“o frankfurtiana: Šdipo e o Anjo (1981); Teoria CrÌtica e Psican·lise (1983); A Raz“o Cativa (1985); As Razžes do Iluminismo (1987); Mal-Estar na Modernidade (1993); A Raz“o NÙmade (1993); Moderno e PÛs-Moderno (1994).

18. ROUANET, "De Eros a SÌsifo", Revista Tempo Brasileiro, n.† 17/18, 1968.

ReferÍncias Bibliogr·ficas

O melhor trabalho e um dos raros que se propuseram a discutir as circunstÉncias em que se deu a entrada da Escola de Frankfurt no Brasil, È o artigo do professor Carlos Nelson Coutinho "Dois momentos brasileiros da Escola de Frankfurt", Cultura e Sociedade no Brasil, 1990. Para alguns esclarecimentos suplementares tambÈm pode ser ™til o livro de Barbara Freitag Teoria CrÌtica Ontem e Hoje, 1986, bem como o artigo recente de Vamireh Chacon intitulado "A RecepÁ“o da Escola de Frankfurt no Brasil", Revista Brasileira de Filosofia, nß 176, 1994.

Este texto foi indicado ý esta editora para traduÁ“o por JosÈ Guilherme Merquior e foi traduzido por Carlos Nelson Coutinho, segundo me asseverou este ™ltimo em entrevista.

SCHWARZ, Um Semin rio de Marx, 1995, p.07.

Em relaÁ“o a Marcuse, h·pelo menos dois em Merquior. Este de 1969, Arte e Sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin, onde Marcuse È apresentado como um grande pensador, uma espÈcie de vanguarda da Escola de Frankfurt. E h·o segundo Marcuse, este da dÈcada de 80. Em obra de 1986, Merquior n“o hesitou em apontar Marcuse como padrinho "desse neofascismo vermelho em sua tola, perigosa investida contra as liberdades institucionais e as pr·ticas civilizadas". MERQUIOR, O Marxismo Ocidental, 1986, p.225.

MERQUIOR, Arte e Sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin, 1969, p.15.

Entre estas obras, uma das mais divulgadas foi o Fundamentos do Marxismo-Leninismo, 1962, obra coletiva de oito autores russos , KUUCINEN, O.V. et alii, com quase 800 p ginas. Traduzida diretamente do russo - da ediÁ“o autorizada pela Editora Estatal de Literatura PolÌtica de Moscou - por Jacob Gorender e M rio Alves, militantes do PC, foi publicada em 1962 pela Editora VitÛria. Esta, antes de ser fechada pelo regime militar, publicou tambÈm muitos outros textos ligados ao "marxismo oficial", incluindo uma excelente seleÁ“o de obras de Marx em trÍs volumes, que circula atÈ hoje, com a mesma traduÁ“o, pela Editora Global.

SCHWARZ, Um Semin rio de Marx, 1995.

Para uma excelente descriÁ“o e an·lise desta tr·gica e esterilizante heranÁa do "Realismo Socialista" no Brasil, consultar a tese de doutorado de DÍnis Roberto Villas Boas de Moraes: O Imagin rio vigiado - a imprensa comunista e a recepÁ“o do Realismo Socialista no Brasil (1947-1953), ECO/UFRJ, 1993.

COUTINHO, "Dois momentos brasileiros da Escola de Frankfurt", p.187.

Uso aqui o termo emblem tico, a partir de uma interpretaÁ“o da sua acepÁ“o original em EstÈtica, que define o emblema como uma figura que serve de sinal de reconhecimento, tendo por fim representar e permitir reconhecer - quer uma comunidade, um personagem, uma organizaÁ“o ou uma qualidade abstrata - atravÈs do uso de imagens simbÛlicas ou alegÛricas capazes de resumir, concretizar e evocar o que elas representam (SCRIABINI, "Embläme". In ENCYCLOP?DIE..., Les Notions..., Vol. I, p.771.).

MERQUIOR, Arte e Sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin. 1969, p.17.

Em 1973 ainda saiu no Brasil, pela Editora Zahar, a traduÁ“o de um livro de Marcuse, Contra-RevoluÁ“o e Revolta que ele escrevera no ano anterior. Possivelmente foi o livro menos lido de Marcuse no Brasil e onde ele, preocupado com as apropriaÁžes estranhas a seu pensamento, fez o que alguns perceberam como uma auto-crÌtica. Nesta obra, tentou estabelecer limites mais claros para a interpretaÁ“o das suas idÈias. RechaÁava com veemÍncia, por exemplo, as apro- priaÁžes "irracionalistas" de suas idÈias em alus“o ao que ocorrera com a contra- cultura. Defendia, mais uma vez, o papel transcendente da arte que, segundo ele, n“o poderia ser reduzido e explicado dentro do sistema abstrato de base e superestrutura, como queriam nele "ler" alguns marxistas de plant“o.
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